Inclusão profissional nº 26/2020 – 15/07/2020

A inclusão é um processo

No mês em que a Lei de Cotas completa 29 anos, Gama lembra que
a realidade de discriminação histórica e recentes retrocessos
políticos dificulta o caminho da inclusão de pessoas com
deficiência na educação e no mercado de trabalho

Mariana Payno

Aos 18 anos, a vida de Rodrigo Mendes era como a de qualquer outro jovem paulista de classe média. Entre a prática de esportes e os estudos para o vestibular, no entanto, um assalto à mão armada mudou os rumos de sua história: ele levou um tiro que provocou tetraplegia, isto é, a perda dos movimentos dos ombros para baixo. A rotina e os planos para o futuro se transformaram em procedimentos médicos e sessões de fisioterapia — período que, para ele, deu origem a um processo de conscientização. “Em nenhum momento me faltou ajuda”, conta Mendes a Gama no Podcast da Semana. “Me dei conta de que eu era uma exceção e me via numa situação de privilégio.” Foi daí que o rapaz, nascido numa família de professoras, decidiu criar o Instituto Rodrigo Mendes, organização que luta para que toda pessoa com deficiência tenha acesso às mesmas oportunidades que ele, começando por uma educação de qualidade em escolas comuns.

Dados sobre inclusão no sistema educacional brasileiro revelam que essa é uma batalha difícil, mas extremamente necessária. Apesar de o país possuir uma legislação que garante o acesso, a permanência, a participação e a aprendizagem, há um descompasso com a realidade. O Anuário Brasileiro da Educação Básica mostra, por exemplo, que em 2018 quase 70% das escolas urbanas não possuíam salas com recursos para atender pessoas com deficiência e apenas 58% dessas instituições eram equipadas com banheiros adequados para a acessibilidade. “Estamos falando de uma situação de exclusão histórica e sistemática das pessoas com deficiência”, diz Ivone Santana, consultora em diversidade e inclusão e fundadora do Instituto Modo Parités. Não à toa, o caminho da lei à ação é longo.

“A inclusão é um processo. Durante séculos as pessoas com deficiência foram exterminadas, eliminadas da sociedade, guardadas em asilos”, explica Marta Gil, coordenadora do Instituto Amankay e consultora na área de inclusão. “Para tirar essa ideia de que elas não têm valor e potencial, demora. Essa mentalidade está sendo mudada, mas não existe uma varinha mágica: precisamos investir muito nisso e sem a legislação seria praticamente impossível.” Porém, como pode acontecer com qualquer direito humano, mesmo conquistas já celebradas correm risco em tempos de retrocesso político.

Quase 70% das escolas urbanas não possuem salas equipadas
para o Atendimento Educacional Especializado. Na zona
rural, esse número salta para quase 85%

É o caso da recente alteração no edital do Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem, uma das principais portas de entrada para grande parte das universidades do Brasil. Em 2020, a prova terá pela primeira vez uma versão digital, para a qual não foi assegurada nenhuma forma de acessibilidade ou atendimento especial para alunos com deficiência, sempre garantidos nos exames presenciais. “Isso joga no lixo todos os anos de movimento pela inclusão e o esforço de muitas pessoas”, diz Santana. Bem, a luta continua: a senadora Mara Gabrilli (PSDB), uma das figuras políticas do país mais ativas por essa bandeira, apresentou no fim de junho uma indicação legislativa (em tramitação até o fechamento desta edição) para que o Ministério da Educação altere esse ponto do edital do Enem.

Vencendo um sistema de exclusão na educação

Encontrar uma alternativa acessível para fazer a prova digital do Enem é, na verdade, apenas uma batalha em uma longa guerra contra um sistema de exclusão do acesso à educação. Além de prédios, salas e banheiros adequados para a acessibilidade, é necessário que os professores e a metodologia de ensino se adaptem para acolher as pessoas com deficiência. Segundo o recém-lançado Relatório de Monitoramento Global da Educação da Unesco, um em cada três educadores de 43 países assume não fazer isso. “Uma das principais barreiras da inclusão na educação é acreditar que ela é possível e desejável”, diz o documento.

Mesmo com todas as adversidades, muitas pessoas com deficiência seguem acreditando e buscando cada vez mais a escola no Brasil. “E não só a nível fundamental, mas médio e técnico ou superior. Essa é uma curva ascendente e que não cai. Ainda estamos longe do ideal, mas subimos a cada ano”, explica Gil. De acordo com os dados mais recentes do MEC, em uma década a porcentagem de alunos com deficiência ou transtornos globais do desenvolvimento matriculados em classes comuns quase que dobrou: de 46,8% para 85,9%. “Isso é um contingente enorme e representa muito, porque mais gente vai saber que essas pessoas são capazes”, diz Santana.

Em 11 anos, quase dobrou a porcentagem de alunos com algum
tipo de deficiência matriculados em classes comuns

Para ela, a representatividade e a convivência são importantes para combater a cultura de exclusão que não se restringe ao sistema educacional, mas continua para além dele, na hora de ingressar no mercado de trabalho. “O que causa essa segregação histórica é o fato de que as pessoas que hoje estão na liderança, na posição de escolher e contratar funcionários, não tiveram oportunidade de conviver com as pessoas com deficiência ou de olhar para elas como alguém que tem potencial.” É por isso que, apesar de muitas vezes serem qualificadas, essas pessoas ocupam cargos considerados de pouco prestígio e têm salários mais baixos.

Enfrentando a discriminação no trabalho

Geralmente, as vagas de base da pirâmide corporativa são as destinadas ao cumprimento da Lei de Cotas, que dia 24 de julho completa 29 anos de vigência e obriga empresas com mais de 100 funcionários a contratarem um percentual de pessoas com deficiência, variando de 2% a 5% — reserva que poderá ser substituída pelo pagamento de impostos se um novo projeto do governo, considerado um grande retrocesso para a inclusão, for aprovado. “Como acredito que aquela pessoa não tem potencial, coloco ela como auxiliar do assistente, num cargo em que ‘não vai estragar nada’”, exemplifica Marta Gil. “E assim se perdem profissionais valiosos.”

O despreparo dos gestores para lidar com funcionários com deficiência, a falta de acessibilidade e a discriminação são, assim, os maiores empecilhos para que essa parte da população tenha acesso a oportunidades no mundo do trabalho. “O preconceito é isso: não saber lidar, entrevistar nem anunciar as vagas de forma que a pessoa com deficiência se sinta incluída”, diz Reinaldo Bulgarelli, sócio-diretor da empresa de consultoria em diversidade Txai. Tudo isso pode acabar minando as possibilidades de progresso na carreira para esses trabalhadores. “Talvez você até contrate um bom profissional, mas por vários motivos não consegue falar com ele, porque faltam recursos de acessibilidade na comunicação e nos treinamentos”, explica Ivone Santana.

Menos de 1% dos cargos de liderança nas 500 maiores empresas
do Brasil é ocupado por pessoas com deficiência

Segundo ela, uma das consequências disso é que menos de 1% dos cargos de liderança nas 500 maiores empresas do Brasil é ocupado por pessoas com deficiência. “O despreparo do gestor também faz com que bons profissionais não sejam aproveitados pelas empresas e não cresçam lá dentro”, diz. Bulgarelli completa: “Nas maiores empresas, a pessoa com deficiência ainda é uma grande ausente e ainda existe a dificuldade de perceber essa pessoa como um colaborador que precisa ser desenvolvido como qualquer outro. Então, ela enfrenta mais essa expressão da discriminação: é colocada num cantinho, sem ninguém pensar no desenvolvimento dela”.

Participando da sociedade

Os especialistas avaliam que esse cenário também traz perdas para a sociedade como um todo, inclusive economicamente. “O que significa ter meio milhão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho brasileiro? Elas contribuem enormemente para o desenvolvimento social e econômico do país, pagam impostos, têm poder de compra”, afirma Marta Gil. O que não pode ser desprezado, já que as pessoas com deficiência compõem uma grande parte da população brasileira — 24% de acordo com o censo de 2010, o último realizado pelo IBGE. “Se você limita o acesso dessa parcela às oportunidades de trabalho, remuneração e desenvolvimento, você está represando o PIB do país”, diz Bulgarelli.

1,4 bilhões de reais foi o impacto das contribuições de
trabalhadores com deficiência para a previdência

Para eles, as leis brasileiras que promovem a inclusão hoje são grandes símbolos de conquista para as pessoas com deficiência — assim como as iniciativas bem sucedidas de empresas e escolas nesse sentido. Até porque, para que tudo isso ocorresse, foi preciso ação: apenas no papel, os projetos não são suficientes. “É preciso ampliar a consciência da população para que a legislação se efetive. A gente depende sempre de ter mais Rodrigos Mendes, de ter uma sociedade civil que lute. O movimento de pessoas com deficiência precisa de mais aliados, também entre as pessoas sem deficiência”, defende Bulgarelli.


Assim como intuiu Rodrigo Mendes ao criar seu instituto, como contamos no começo deste texto, a principal via para promover essa consciência e atitudes mais inclusivas em todos os setores da sociedade é a educação. Afinal, o relatório da Unesco atesta: “A diversidade de estudantes nas salas de aula e nas escolas regulares pode impedir os estigmas, os estereótipos, a discriminação e alienação”. Parece um bom começo.

Proporção de pessoas com deficiência por ocupação
O gráfico mostra as 15 profissões com maior porcentagem de trabalhadores com deficiência e as 15 ocupações em que essa porcentagem é menor, isso dentre as 100 ocupações mais frequentes entre os trabalhadores do mercado formal, em 2018

Proporção de trabalhadores com deficiências em relação ao total e rendimento médio mensal (em reais)

Em 2017, a maioria das ocupações com maior prevalência de pessoas com deficiência tem salários médios que não passam de R$ 5 mil



Fonte: Revista Gama