Boletim Técnico nº 03/2020 – 03/09/2020

Os 20 anos do C.RE.MA: muito a comemorar e muito caminho para trilhar

A data, 30 de junho de 2000, é um marco da quebra de um paradigma, do processo de contratação da manutenção das rodovias brasileiras. Uma data que não pode e não deveria passar despercebida em tempos de pandemia. A data marca a publicação, no Development Business, o “Diário Oficial” do Banco Mundial, do chamamento para empresas construtoras apresentarem documentos de Pré-Qualificação para o Programa C.RE.MA gaúcho. Com variação de alguns meses, a efeméride também envolve o C.RE.MA federal.

O C.RE.MA, para quem não sabe, é o maior, o mais longevo e o mais bem-sucedido programa de manutenção para as rodovias brasileiras. A solidez do C.RE.MA é tamanha que, num país onde os programas não sobrevivem à primeira troca de governo, sequer passa pela cabeça dos governantes descontinuar os C.RE.MAs em andamento. Ao contrário, fala-se frequentemente em ampliá-lo.

O sentimento de orgulho não podia ser menor. Poder contar às gerações futuras que eu estava lá, não tem preço. Não apenas participar desse esforço e coordenar equipes envolvidas no empreendimento, mas também poder se apoiar em muitos ombros de gigantes. Técnicos estrangeiros do Banco Mundial e da francesa Scetauroute e nacionais da Dynatest e APPE. E a valorosa equipe do DAER/RS.

Uma personalidade-chave nesse processo é o Prof. Dr. Ernesto Preussler. Por razões de saúde, precisava fazer caminhadas diárias. E saía para caminhar por volta das 6h da manhã, em São Paulo. E eu em Porto Alegre. Os assuntos eram vários: simplificação dos projetos, de como um determinado serviço interfere no atingimento de um indicador de desempenho, como contornar obstáculos, como alcançar maior transparência do processo de fiscalização e maior responsabilização dos parceiros privados. Lá pelas tantas, dizia ele de lá: vai acabar a bater … foi-se a bateria depois de mais de hora de “reunião”. Havia pouco tempo, mas foi o tempo suficiente para a concepção e consolidação dos processos.

Um dos insights do Prof. Ernesto e que vale a referência diz respeito à aplicação de penalidades, a opção pela “Notificação” em lugar da “Advertência” e “Multa”. O professor deu-se conta que a Advertência e Multa envolvem defesa prévia, argumentos, contra-argumentos, instâncias administrativas. Eventualmente, a discussão eminentemente técnica iria terminar no Judiciário. Havia o risco real de os contratos encerrarem sem os faltosos serem responsabilizados. Eu coordenava, mas era o Prof. Preussler quem passava os temas: Pensa aí, Paulinho, um jeito de escaparmos dessa armadilha. Na “reunião” seguinte, discutíamos pós e contras das alternativas criadas.

Numa dessas, surgiu a “Notificação”, “Retenção” e “Período de Correção”. Para cada inconformidade haveria uma Retenção Financeira e um Período de Correção. Constatada a inconformidade, o fiscal “Notificaria” o faltoso, para informá-lo da Retenção associada. A Retenção se tornaria insubsistente e voltava ao contratado se a inconformidade fosse sanada dentro do Período de Correção; caso a inconformidade não fosse sanada dentro do Período de Correção, o montante associado à Retenção tornava-se “Não Reembolsável”, ou seja, subtraído do montante mensal a ser recebido pelo contratado. Desconheço, em 20 anos de C.RE.MA, alguém que tenha contestado esse procedimento. Da mesma forma que essa, há boas “estórias” que merecem um dia ser contadas.

Algumas inovações não saíram exatamente como planejado. Originalmente pretendia-se um pagamento mensal único, uniforme e regular – a “mesada”. Então, percebeu-se a necessidade de subdividir a execução em duas etapas: uma etapa inicial, para colocar as rodovias em condições de segurança e trafegabilidade, e uma etapa posterior, de manutenção das condições alcançadas. A manutenção foi dividida em duas mesadas (Manutenção Especial para os primeiros seis meses e Manutenção Rotineira durante os quatro anos e meio seguintes). E a Restauração foi remunerada por tipo de intervenção, por quilômetro executado e também subdividida (Obras Preliminares, nos dois primeiros anos, e Obras de Prioridades 1, 2 e 3, para execução no segundo, terceiro e quarto anos). Um Frankenstein: um misto de empreitada por preço unitário com empreitada por preço global. Foi o que de melhor se conseguiu.

Dessa e de outras formas, peça por peça, parágrafo por parágrafo, o C.RE.MA nacional foi sendo estruturado. Vale dizer, o C.RE.MA foi criado por Gerard Liautaud e Asif Faiz, técnicos do Banco Mundial, e por Guillermo Cabana, da Dirección Nacional de Vialidad, na Argentina. Mas, foi necessário adaptá-lo à realidade e à legislação brasileira – em que pese todo o apoio do Banco Mundial e faculdade legislativa oportunizada pelo § 5º do art. 42 da Lei Federal nº 8.666/93. E houve processos inaceitáveis aos legisladores nacionais, mas que eram inarredáveis pelo Banco Mundial: o Comitê e o Árbitro para solução de conflitos entre Contratados e Contratante, por exemplo. Encontrou-se uma solução de contorno satisfatória para ambos os lados.

De fato, o C.RE.MA representou enorme quebra de paradigma ao seu tempo: unificou os contratos de conservação rodoviária (manutenção) e os contratos de restauração rodoviária sob um único instrumento contratual. Simplificou a fiscalização. Responsabilizou contratados. E deu caminhamento aos contratos de sinalização rodoviária – ora contratados pela operação rodoviária, ora incorporados à restauração rodoviária, ora incluídos na conservação rodoviária. O C.RE.MA, de fato, transferiu maiores responsabilidades aos parceiros privados. O contratado ficou obrigado a promover um levantamento-testemunha das condições de manutenção das rodovias antes do início do contrato. Ficou obrigado também a denunciar inconformidades verificadas entre o projetado e a condição real das rodovias. Não reclamou nesse momento, não reclamava mais. E o contratado ficou responsável por realizar e apresentar os controles técnicos e tecnológicos das obras e serviços executados. O contratado ainda apresentava a primeira versão da medição ao fiscal – ficando responsável pelas informações. Qual foi minha surpresa ao perceber, passados 20 anos, o item “Controles Tecnológicos Mínimos” sobrevive nos editais do C.RE.MA. Criação do Prof. Ernesto Preussler, do Eng. Luiz Somacal Neto e do técnico do Banco Mundial, Jean-Claude Sallier.

Uma iniciativa pouco explorada do C.RE.MA foi inspirada no Programa Brasileiro de Concessão de Rodovias. Oferecia a possibilidade de os licitantes proporem intervenções alternativas àquelas trazidas no projeto, assumindo a responsabilidade pela nova solução de intervenção – desde que se traduzissem em maior durabilidade e ou em menor custo para o contratante. Vem à lembrança apenas uma alternativa ao projeto básico. Trata-se da reconstrução parcial dos pavimentos (ou seja, a remoção da camada de pavimento velho, reconformação da sub-base, execução de uma nova camada de base, e aplicação de uma camada de concreto asfáltico), alterada para reciclagem a frio do pavimento, a incorporação do revestimento a “nova” base, aplicação de uma camada de tratamento superficial duplo direto e capa selante por processo invertido. Por nada, por nada, a proposta alternativa suprimiu enorme parcela do transporte (transporte do pavimento removido para fora da estrada, transporte da base nova para dentro da estrada), representando redução na ordem de 40% nos serviços e economia de 30% no valor dos contratos.

Enfim, aliado ao sentimento do orgulho de participar desse processo, remanesce um fundo de frustração: a frustração de o processo não ter evoluído. De certa forma, ideava-se converter o C.RE.MA em uma forma de “Concessão Sem Pedágio”, aplicável àquelas rodovias inviáveis ao pedagiamento, ou seja, o usuário usufruiria um tipo inferior de serviço de concessionária de rodovia sem a necessidade de pagar o pedágio. Por conta dos embates políticos da época, decorrentes da subida do Partido dos Trabalhadores ao poder, aventou-se tratar-se de um retrocesso e que se estava propondo o fim das concessões rodoviárias. Em meio a um embate político-ideológico acirrado, é natural, que muito da racionalidade dos argumentos se perca.

Por corolário, ideava-se transferir a totalidade do gerenciamento da manutenção da rede viária inviável à concessão para a iniciativa privada, mediante o pagamento de uma única mesada e a fixação de indicadores de desempenho, mesada essa reduzida por não atingimento/manutenção dos indicadores de desempenho contratados. Vale lembrar, a Lei das Parcerias Público-Privadas (Lei Federal Nº 11.079/2004), na Modalidade Administrativa, foi promulgada bem depois do lançamento do C.RE.MA (2000). Ademais, as PPPs para o setor rodoviário não conseguiram “decolar” . E vale lembrar, somente muito recentemente, em 12/12/2019, foi promulgada a Lei 13.934/2019, que regulamenta os contratos de desempenho no âmbito da administração pública federal, de iniciativa do de autoria do senador Antonio Anastasia.

Meu pensamento atual: está na hora de começar a pensar o novo programa do futuro. Porque o mercado está mais do que preparado para a próxima quebra de paradigma: a retomada da ideia original do C.RE.MA. Já há conhecimento acumulado suficiente para essa nova virada. Começar a pensar em transferir a integralidade do gerenciamento da manutenção para a iniciativa privada, com a incorporação de pequenas doses de operação (socorro médico, socorro mecânico, comunicação com os usuários, entre outros). E começar a pensar no C.RE.MA das não pavimentadas – que não conseguiu sair do papel àquela época. Pensar em remunerar o parceiro privado mediante o pagamento de uma mesada “única”, “uniforme”, “regular” (à semelhança do setor elétrico onde se paga por quilowatt-hora), nesse caso fundada em quiloveículo.quilômetro.ano. Tudo embutido, como era a ideia original. E a reunificação dos contratos dispersos entre conservação, revitalização, recuperação, restauração e reconstrução de rodovias, sob um único contrato.

Quem sabe, daqui a uns vinte anos, eu não volto para contar a história dessa outra quebra de paradigma..

Eng. MSc. Paulo R. R. Pinto
Professor Exclusivo na New Roads Consultoria
Ex-DNER, DAER/RS e Consultor do Banco Mundial
Auditor do TCE/RS
E-mail: prrpinto@newroads.com.br