Inclusão profissional nº 11/2021 – 15/07/2021

Precisamos falar de Direito ao Trabalho

Falar dos 30 anos da Lei de Cotas é falar do exercício do Direito ao Trabalho por quem, durante séculos, não pôde exercê-lo – salvo honrosas exceções. Verificamos a presença mais significativa de brasileiros e brasileiras com deficiência no mercado formal de trabalho a partir da promulgação da Constituição Federal do Brasil (1988). Mas foi em 1991 que o Artigo 93 da Lei 8.213 estabeleceu os critérios para a reserva legal de cotas para empresas com 100 trabalhadores ou mais. Dada sua importância, esse artigo passou a ser considerado “lei”. Porém, foi somente a partir de 2003 que a lei de cotas passou, efetivamente, a vigorar e a ser fiscalizada, com a aprovação de normas para a imposição da multa administrativa (Portaria no 1.199).

A Lei de Cotas é uma ação afirmativa, que visa combater discriminações e possibilitar o acesso ao trabalho. Até 2019, ela garantiu a contratação de mais de 500 mil pessoas com deficiência. Um círculo virtuoso vai se estabelecendo: pessoas até então vistas como “incapazes” passam a contribuir para o crescimento econômico, a consumir e a pagar tributos e impostos. Mais empresas reconhecem a diversidade trazida pela condição da deficiência como positiva, ao estimular a inovação e a descoberta de talentos e potenciais; contribuir para a qualidade do clima institucional, para a imagem institucional, interna e externa; e evidenciar a existência de significativo nicho de mercado a ser explorado. Esses fatores apontam para a sustentabilidade do negócio.

A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência – CDPD (ONU, 2006) impulsionou a inclusão, em especial no Brasil, onde foi recepcionada com equivalência de Constituição Federal (Decreto Executivo 6.939/2009) e posteriormente pela Lei 13.146/2015 (Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência), que a efetivou.

A partir desse breve retrospecto, podemos dizer – com o respaldo da CDPD – que a inclusão é um processo histórico, em constante devir. Também constatamos que receber formação profissional e começar a exercê-la em um mundo com regras próprias e em constante transformação ainda é uma vivência recente para esse grupo populacional.

Chegamos então ao ano de 2020, que se revelou um turning point para o Brasil e para o mundo – e, claro, também para as pessoas com deficiência. A pandemia escancarou situações de vulnerabilidade e desigualdade que atingiram os segmentos mais frágeis da sociedade: pela primeira vez, a presença de trabalhadores com deficiência mostrou ligeiro decréscimo em relação aos trabalhadores sem deficiência. Trabalhar em casa (home office) nem sempre é possível, seja pela precariedade (ou ausência) de acesso à internet; a intranet, as plataformas e ferramentas digitais da empresa que frequentemente não têm acessibilidade digital; ou ainda pelas características da função exercida, que precisa ser presencial – para mencionar alguns entraves.

Embora os dados da RAIS 2020 ainda não estejam disponíveis, sites de anúncio de vagas e levantamentos parciais, feitos por consultorias especializadas, apontam menor procura ao longo de 2020, evidenciando que o impacto da pandemia também foi sentido por este expressivo segmento populacional. Por outro lado, há sinais que apontam um cenário positivo. Segundo a Page PCD, a qualidade das vagas melhorou. No ano passado, enquanto as posições para auxiliar caíram de 27% para 13%, a busca por pessoas com deficiência para gerência ou níveis superiores saltou de 1% para 21%.

FUTURO À VISTA

Além dessas questões, que podem ser consideradas circunstanciais, pois se espera que a pandemia seja controlada, há que se ampliar a visão: a Quarta Revolução Industrial (ou Indústria 4.0), anunciada desde 2016, está se acelerando a um ritmo exponencial e constitui uma preocupação global. Documentos como a Declaração Centenária para o Futuro do Trabalho (OIT, 2019) e a Agenda 2030 (destaque para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável 8, 9 e 10) enfatizam a necessidade premente de incluir as pessoas com deficiência no contexto do crescimento econômico e do trabalho decente.

A publicação “Tornando Inclusivo o Futuro do Trabalho das Pessoas com Deficiência” (OIT, Fundação ONCE e Rede Global de Empresas e Deficiência/OIT – 2020) destaca o poder público, empresas, universidades, sindicatos e associações de pessoas com deficiência como sendo os agentes apoiadores que garantem, em um mundo em constante mudança, que as abordagens de trabalho estejam centradas nas pessoas com deficiência e outros grupos em situação de vulnerabilidade.

Já encontramos, no Brasil e em outros países, práticas de trabalho norteadas pelos princípios da inclusão e da equiparação de oportunidades. Porém, é necessário avançar mais, ampliando o espectro da articulação para envolver outros atores sociais.

UM CÍRCULO VIRTUOSO VAI SE ESTABELECENDO: PESSOAS, ATÉ ENTÃOVISTAS COMO “INCAPAZES”, PASSAM A CONTRIBUIR PARA O CRESCIMENTO ECONÔMICO, A CONSUMIR E A PAGAR TRIBUTOS

FAMÍLIA E ESCOLA

Destaco a importância de acrescentar pelo menos outros três atores sociais ao grupo de agentes apoiadores acima citados: a família, o sistema educacional (desde a creche) e órgãos e instâncias de representação, como o Ministério Público, que é uma instituição independente e não pertence a nenhum dos três poderes constitucionais, Conselhos de Defesa e Direitos de Pessoas com Deficiência, entidades representativas, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que tem comissões específicas, entre outras.

Ainda que o objetivo da publicação “Tornando Inclusivo o Futuro do Trabalho das Pessoas com Deficiência” contemple o mercado de trabalho formal, ou seja, que emprega pessoas com ou sem deficiência a partir de 16 anos de idade (exceto na condição de Aprendiz, cuja idade inicial é de 14 anos), considero relevante considerar os três atores sociais acima mencionados.

A família e a escola são as instâncias iniciais e decisivas para a formação da personalidade e o desenvolvimento do potencial social e mental que possibilitam ingressar no mundo do trabalho, seja como colaboradores ou como empreendedores. Também é preciso investir, desde o início da formação educacional, nas habilidades e atitudes que a Economia 4.0 demanda: saber fazer a curadoria das informações necessárias, investir na educação continuada (lifelong learning), estar constantemente atualizado, trabalhar em equipe e saber lidar com a fusão entre os mundos físico e virtual, entre outras habilidades.

Portanto, não é possível esperar até que as pessoas cheguem às universidades para que desenvolvam as habilidades requeridas pelo mercado. A participação é cada vez mais demandada, em todas as esferas da sociedade. Assim, é importante dialogar de forma mais próxima com as entidades de representação acima mencionadas, visando ao cumprimento dos dispositivos, valores e princípios constantes no atual ordenamento jurídico e marcos conceituais firmados pelo Brasil.

Quanto à Lei de Cotas, entendo que é necessário adequá-la à realidade atual. Esse é um processo a ser realizado de forma participativa, envolvendo os agentes apoiadores citados pela OIT e principalmente as próprias pessoas com deficiência, que devem ocupar cada vez mais o seu lugar de fala. Além disso, a adequação da Lei de Cotas deve estar fundamentada em pesquisas sobre a realidade do mercado de trabalho brasileiro.

Finalmente, nunca é demais enfatizar a importância que a Informação e a Comunicação têm ao longo de todo o processo recomendado: o desafio é chegar até a ponta, utilizando recursos de acessibilidade e todos os canais, dos acadêmicos às redes sociais, respeitando as diferentes culturas.

*MARTA GIL é coordenadoraexecutiva do Amankay Instituto de Estudos e Pesquisas, consultora na área de inclusão de pessoas com deficiência, com ênfase em educação e trabalho, empreendedora social reconhecida pela Ashoka Empreendedores Sociais, palestrante em encontros nacionais e internacionais e escritora.