Boletim Jurídico nº 09 (18/09/2024)
Licitações para serviço técnico especializado de natureza intelectual
A Lei nº 14.133/2021 dispôs em seu artigo 6º, inciso XVIII, quais serviços considera como técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual. A consequência disso é que, para tais serviços, o critério de julgamento “técnica e preço” deverá ser preferencialmente adotado (artigo 36, §1º, inciso I).
Devido ao vocábulo “preferencialmente”, a opção pela adoção do critério de julgamento “técnica e preço” será feita quando o Estudo Técnico Preliminar (ETP) demonstrar que a avaliação e a ponderação da qualidade técnica das propostas que superarem os requisitos mínimos estabelecidos no edital forem relevantes aos fins pretendidos pela administração (artigo 36, §1º).
Da mesma forma dispôs a Instrução Normativa Seges/MI nº 2/2023, segundo a qual “quando o estudo técnico preliminar demonstrar que os serviços que envolverem o desenvolvimento de soluções específicas de natureza intelectual, científica e técnica puderem ser descritos como comuns, nos termos do inciso XIII do art. 6º da Lei nº 14.133, de 2021, o objeto será licitado pelo critério de julgamento por menor preço ou maior desconto” (artigo 12, parágrafo único).
Ocorre que, em relação a determinados serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual, previstos nas alíneas “a”, “d” e “h” do inciso XVIII do caput do artigo 6º da Lei nº 14.133/2021, cujo valor supere a ordem de R$ 359.436,08 [1], foi prevista regra específica no §2º do artigo 37.
Assim, para a contratação de estudos técnicos, planejamentos, projetos básicos e projetos executivos, fiscalização, supervisão e gerenciamento de obras e serviços, controles de qualidade e tecnológico, análises, testes e ensaios de campos laboratoriais, instrumentação e monitoramento de parâmetros específicos de obras e meio ambiente, cujo valor seja acima de R$ 359.436,08, o julgamento será por “melhor técnica” ou “técnica e preço”.
Logo, para tais serviços e valores, a própria lei parece ter restringido a liberdade de escolha do critério de julgamento, prevendo que ele será por melhor técnica ou técnica e preço, obrigatoriamente.
A própria Instrução Normativa Seges/MI nº 2/2023 dispõe, em seu artigo 3º, §2º, que “Nas hipóteses previstas nas alíneas ‘a’, ‘d’ e ‘h’ do inciso I deverá ser observado o disposto no § 2º do art. 37 da Lei nº 14.133, de 2021”.
Doutrina e jurisprudência divergem
A partir dessa previsão, doutrina e jurisprudência, ainda que de maneira tímida, dividiram-se na opinião a respeito da possibilidade ou não de que tais serviços sejam licitados com critério de julgamento “menor preço” ou “maior desconto”.
Isso porque o Tribunal de Contas da União (TCU), no recente Acórdão nº 1.217/2024 sobre o tema, reconheceu que “era comum, com base na legislação anterior, a realização de certames para contratação de serviços técnicos especializados, inclusive aqueles relacionados nas alíneas ‘a’, ‘d’ e ‘h’ do inciso XVIII do caput do art. 6º da Lei nº 14.133/2021, com critério de julgamento ‘menor preço’, o que era inclusive aceitável pela jurisprudência do TCU”.
A celeuma jurídica é de extrema relevância e possui um grande impacto na administração pública, tratando-se de matéria inédita a ser debatida sob a égide da Lei nº 14.133/2021, conforme reconhecido pelo TCU no acórdão acima citado.
Um ponto importante que não pode deixar de ser citado é que o polêmico §2º do artigo 37 da Lei nº 14.133/2021 foi inicialmente vetado pelo presidente da República à época, sob o fundamento de que a imposição vinculada do critério de julgamento “melhor técnica” ou “técnica e preço” não se mostrava adequada e feria o interesse público, podendo haver um descompasso entre a complexidade/rigor da forma de julgamento e o objeto de pouca complexidade que prescindem de valoração por técnica e preço.
Referido veto, contudo, foi derrubado pelo Congresso Nacional, deixando bem clara a intenção do legislador de vincular o critério de julgamento nos casos que especificou.
As doutrinas de Ronny Charles [2] e Joel Menezes Nieburh [3] entendem que o dispositivo em análise restringe a liberdade do agente público competente na escolha do critério de julgamento, que poderá ser apenas por “melhor técnica” ou “técnica e preço”. Nieburh, inclusive, chega a criticar a redação do dispositivo, alegando que ele não tem qualquer plausibilidade lógica ou sentido e que parece, pura e simplesmente, fruto de lobby, ainda que legítimo, do setor de engenharia consultiva.
Para o referido jurista “nem sempre se constatam potenciais diferenciais técnicos qualitativos que superem os requisitos técnicos mínimos exigidos no edital em relação aos tais serviços de engenharia consultiva (…) Também não se consegue antever explicação para distinguir os serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual mencionados nas alíneas “a”, “d” e “h” em detrimento dos demais. Não há nada que justifique dar especial relevo, por exemplo, a serviço atinente a estudo técnico (alínea “a”) em detrimento de serviço de consultoria técnica (alínea “c”), que acabam até mesmo se confundindo – o estudo técnico é produto do serviço de consultoria técnica”.
Mas entende que “goste-se ou não, apesar de não se vaticinarem razões para o §2º do artigo 37 da Lei nº 14.133/2021, ele faz parte da Lei nº 14.133/2021, passou pelo processo legislativo e não contraria diretamente qualquer dispositivo constitucional. Deve-se respeitar a vontade do legislador encarnada no §2º do artigo 37 da Lei nº 14.133/2021, sem se valer de artimanhas e manipulações de princípios jurídicos para contorná-la”.
Em contraposição aos autores acima, os procuradores do estado do Paraná Hamilton Bonatto e Rafael Costa [4] entendem que mesmo dentre os serviços constantes das alíneas “a”, “d” e “h” do inciso XVIII do artigo 6º existiriam aqueles que não possuem natureza preponderantemente intelectual, de forma que, devidamente constatado que a qualidade e a conformidade técnica podem ser facilmente verificadas por padrões e especificações pré-definidas, não haveria óbice na utilização do critério de julgamento “menor preço” ou “maior desconto”.
No recente Acórdão nº 1.217/2024-Plenário, do TCU, formaram-se duas correntes na análise técnica sobre o tema: a primeira defende a interpretação literal da lei, exigindo a obrigatoriedade da adoção do critério de técnica e preço ou melhor técnica para todas as contratações relacionadas nas alíneas “a”, “d” e “h” do inciso XVIII do artigo 6º; a segunda sustenta que “a melhor interpretação para essa questão é no sentido de que os serviços técnicos especializados relacionados no inciso XVIII do caput do art. 6º da Lei 14.133/2021 podem ou não ser considerados de natureza predominantemente intelectual, a ser verificado no caso concreto, considerando, entre outras coisas, a complexidade e o contexto em que são aplicados”.
O Ministério Público junto ao TCU se filiou à segunda corrente, entendendo que nem todos os serviços mencionados nas alíneas “a”, “d” e “h” do inciso XVIII do artigo 6º da Lei nº 14.133/2021 se qualificam como “serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual”.
TCM-SP
Dessa mesma forma parecem entender o Tribunal de Contas do Município de São Paulo (TCM-SP), nos autos do processo TC/000167/2024 [5], e o Tribunal Regional do Trabalho da 6ª Região (TRT-6), que, recentemente, também enfrentou o tema após a publicação do Edital de Pregão Eletrônico nº 07/2024 para a contratação de empresa especializada em arquitetura e/ou engenharia para elaboração, desenvolvimento e coordenação do Projeto Executivo Completo de Edificação (Pece), em modelagem BIM (processo Proad nº 16.226/2024 [6]).
De maneira contrária, o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE-SP), em uma representação contra o Edital de Concorrência Eletrônica nº 01/2024, do Serviço Autônomo de Água, Esgoto e Resíduos Sólidos de Aparecida (Saae), cujo objeto era a contratação de empresa de consultoria para elaboração de estudos técnicos de redução e controle de perdas do sistema de abastecimento de água no Município, pelo critério “menor preço”, entendeu que “tendo em vista que o objeto licitado se trata de contratação de serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual, o edital demanda revisão, devendo a Administração do Saae alterar o critério de julgamento, conformando-o ao determinado na legislação, ou seja, melhor técnica ou técnica e preço” (Processo TC-011004.989-24-0, conselheiro Dimas Ramalho, 12/6/2024).
Tendências
Veja-se, então, que os posicionamentos atuais indicam duas tendências: (i) aplicação da literalidade do artigo 37, §2º, da Lei nº 14.133/2021 e a adoção obrigatória dos critérios de julgamento “melhor técnica” ou “técnica e preço” para os serviços que especifica; (ii) entendimento de que a classificação de um serviço como sendo de natureza predominantemente intelectual, para fins de estabelecimento do critério de julgamento “melhor técnica” ou “técnica e preço”, mesmo nos casos das alíneas “a”, “d” e “h” do inciso XVIII do artigo 6º da Lei nº 14.133/2021, deve ser realizada com base nas circunstâncias do caso concreto.
Esse último entendimento sugere que a análise deve considerar a complexidade e a especificidade do trabalho a ser executado, cujo estudo caberá ao Estudo Técnico Preliminar (ETP), documento que se revela essencial para verificar se o serviço a ser contratado demanda uma abordagem predominantemente intelectual ou não, orientando, assim, a escolha do critério de julgamento mais apropriado para o processo licitatório.
O fato é que esses entendimentos, ainda que indicativos de uma direção interpretativa, não são definitivos, tampouco consolidados. O cenário de incerteza jurídica demanda cautela por parte do gestor na tomada de decisões.
A par disso, tem-se que a letra da lei pode, por vezes, ser considerada inadequada ou desajustada em relação à realidade dos fatos, mas não há como fugir de sua aplicação. Existem mecanismos próprios e legítimos para alterar uma legislação que não condiz com a realidade, por meio do devido processo legislativo. Não cabe ao intérprete utilizar artifícios para contornar o texto literal da lei, ainda que isso gere boas consequências práticas.
Melhor alternativa
Assim, neste momento, parece que a aplicação da literalidade da lei se apresenta como o caminho mais seguro, uma vez que seguir estritamente o texto legal ajuda a mitigar riscos e evita potenciais responsabilizações do gestor. Diante da indefinição jurisprudencial, agir em conformidade com o que está expressamente previsto na legislação vigente é fundamental para assegurar a legalidade e a integridade dos atos administrativos.
Por fim, reconhece-se a importância de uma interlocução coordenada entre os órgãos jurídicos, objetivando harmonizar as interpretações e assegurar que as ações administrativas sejam conduzidas dentro dos parâmetros da legalidade. A cooperação entre os órgãos, ainda mais diante de uma matéria inédita e já bastante controvertida, é crucial para a implementação eficaz de políticas públicas, minimizando riscos de inconformidades e promovendo a transparência e eficiência na gestão pública.
Fonte: Conjur