Inclusão profissional nº 24 (04/11/2024)
Pesquisador da USP expõe os obstáculos encontrados por pessoas com deficiência no mundo do trabalho
Doutor em Ciências da Comunicação, Jamir Osvaldo Kinoshita é uma pessoa com deficiência motora e busca compreender as relações entre a comunicação e a inclusão social nos ambientes profissionais
Um estudo realizado na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP buscou analisar as relações de pessoas com deficiência (PcDs) com o mundo do trabalho. Jamir Osvaldo Kinoshita, que já estudava comunicação no mundo do trabalho, conta que a pauta de sua tese surgiu ao reparar que existia uma grande gama de pesquisas sobre a inclusão na atmosfera do ensino, mas pouco era falado sobre a inclusão no universo do trabalho. Sob a orientação da professora Roseli Figaro, doutora e livre-docente da ECA, ele desenvolveu a pesquisa de doutorado intitulada Muito além da porta de entrada: as relações de comunicação no mundo do trabalho das pessoas com deficiência motora e suas contribuições no processo de inclusão social, que foi defendida em maio de 2024.
Kinoshita é jornalista formado pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, mestre e agora doutor em Ciências da Comunicação pela USP, e também PcD motor com baixa mobilidade. Em seu trabalho, ele examinou alguns aspectos que abordam a ligação entre comunicação e a esfera profissional, como o não cumprimento das cotas previstas da Lei nº 8213/1991, o papel do trabalho na identificação das pessoas e os discursos neoliberais de empreendedorismo social e inclusão.
O pesquisador analisa a realidade dessas pessoas na busca por emprego e depois, já dentro das empresas. “A começar que além da dificuldade na contratação, as vagas que são oferecidas para PcDs são, em sua maioria, para cargos operacionais e de baixa remuneração. As empresas contratam pensando na deficiência, não no trabalho”, comenta o pesquisador. “A pesquisa ainda mostra que as pessoas que são contratadas pela lei de cotas não possuem um plano de carreira dentro dessas empresas, são empregadas para seguirem na mesma função enquanto estiverem naquela organização”, completa.
Como inclusão e trabalho se conectam com as ciências da comunicação? O próprio pesquisador responde: “O que nos difere dos outros seres vivos é a capacidade de se comunicar e de trabalhar. Esses aspectos conferem a todo indivíduo o autorreconhecimento e a identificação como ser humano. Só vai existir uma inclusão efetiva de pessoas com deficiência na esfera do trabalho quando as organizações derem voz e espaço a essas pessoas”.
Em sua tese, Kinoshita buscou estabelecer uma conceituação sobre a deficiência, traçando uma linha histórica do tema até chegar às leis que buscam promover a inclusão no mundo do trabalho. Ele analisa e problematiza o descaso de organizações com as cotas previstas por lei. Para isso, o pesquisador acompanhou pessoalmente o cotidiano de trabalho de uma PcD motora.
A partir dos resultados da pesquisa, Kinoshita entende que, enquanto não forem estabelecidas relações comunicacionais em tom de igualdade, a inclusão social seguirá tendo um longo caminho no que se refere a uma acessibilidade integral e a equidade de oportunidades dentro da esfera profissional.
Roseli completa: “Não há trabalho sem comunicação. A comunicação está inserida no trabalho em todas as camadas, na organização, nas ordens e orientações, nas interações entre os trabalhadores. E também está na questão da deficiência e da falta de inclusão, os discursos e preconceitos perpetuados, no não cumprimento da lei. Tudo isso são questões comunicacionais”.
Além da porta de entrada
A Lei Federal nº 8.213/1991, que estabelece os planos de benefícios da Previdência Social, criou regras para a inclusão de PcD no mundo do trabalho. Ela prevê uma porcentagem de vagas que deve ser reservada à PcD, de acordo com o número de funcionários da empresa. São elas: 2% das vagas, para empresas com 100 a 200 empregados; 3%, de 201 a 500 funcionários; 4%, de 501 a 1.000; e 5% para as empresas com mais de 1.001 funcionários. Por isso, a Lei 8.213 ficou conhecida como Lei de Cotas para Pessoas com Deficiência.
Além da reserva de vagas, a lei de cotas procura assegurar um ambiente de trabalho acessível e que ofereça condições de trabalho de qualidade para as pessoas com deficiência. A empresa que descumpre esta lei pode receber multas de até R$ 300 mil.
A aplicação da lei de cotas tem gerado retornos positivos. Segundo dados da Relação Anual de Informações Sociais (Rais) do Ministério do Trabalho e Emprego, o mercado de trabalho para PcD cresceu 60% acima do mercado geral de emprego no período de 2009 a 2021. Os dados da Rais se iniciam em 2009 porque a fiscalização do cumprimento da lei começou apenas em 2008, 17 anos depois de sua promulgação. Após o início dessa vigilância, as contratações aumentaram e, atualmente, são cerca de 550 mil PcD formalmente empregados no País.
Os números ainda são baixos quando comparados ao total de PcD no Brasil. De acordo com levantamento da Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), são cerca de 9 milhões de pessoas na faixa etária de 18 a 64 anos com deficiência. Ou seja, pouco mais de 6% da população PcD brasileira está inserida no mercado formal de trabalho.
O motivo para um número tão baixo é a quantidade de organizações que não cumprem as exigências da lei de cotas. Em sua pesquisa, Kinoshita lembra que apenas 17,6% das empresas no estado de São Paulo cumprem com o regime de cotas, de acordo com dados da Rais de 2019.
Segundo a SIT, frequentemente as organizações buscam se justificar, alegando que faltam candidatos com a formação ou as habilidades exigidas. Porém, a lei também prevê que as empresas viabilizem as contratações, fazendo adequações nas vagas ofertadas. A falta de preparo adequado para a contratação de PcD pode representar fraude na lei de cotas.
O conto de fadas neoliberal
Se atualmente apenas 6% da população PcD no Brasil está formalmente empregada, de qual forma os 94% que estão fora do mercado formal conseguem se sustentar e trabalhar? O trabalho autônomo é uma realidade de muitas pessoas no País e as PcD não escapam dessa situação. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2023, são quase 39 milhões de brasileiros que trabalham informalmente. Também de acordo com o IBGE, em 2022, 55% das pessoas com alguma deficiência estavam na informalidade.
O trabalho informal é tratado por muitos no Brasil como algo louvável, como se a taxa de desemprego no País fosse apenas um detalhe, e que para ganhar a vida e sustentar sua família basta se esforçar mais do que os outros. Mesmo que de alguma forma a informalidade possa significar o sucesso na luta contra o desemprego, Kinoshita busca problematizar essa questão. O tópico a ser criticado pelo pesquisador não é a informalidade em si, mas a romantização dessa realidade no discurso do empreendedorismo, principalmente quando com PcD que “vencem suas deficiências” e são usados como exemplos de superação.
“Nesse discurso, PcD devem ser aquelas pessoas capazes de superar barreiras, desafios, para serem ‘iguais’ às outras e realizarem suas tarefas. Então, veja só, o empreendedorismo social é, na verdade, uma falsa ideia de inclusão social”, aponta o pesquisador.
Kinoshita explica que o que desclassifica a inclusão social no discurso neoliberal do empreendedorismo é a ilusão da meritocracia. Nessa ideologia, entende-se que o caminho é o mesmo para todos e que aquele que está em desvantagem precisa apenas se esforçar mais do que os outros.
“Enquanto essa ideologia da superação de obstáculos persistir, a realidade vai seguir a mesma. Por isso que a comunicação é central na integração, pois as empresas e a sociedade como um todo precisam se adequar para que esse trabalhador consiga se identificar como uma pessoa capaz de executar a mesma atividade que os demais, mesmo que com adaptações”, reitera Kinoshita.
Fonte: Câmara Paulista Para Inclusão da Pessoa com Deficiência